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  • Foto do escritorBeatriz Melo

A vida e os sabores de Kele Cristina

O lirismo de quem segue superando seus desafios de cabeça erguida e vida na ponta da língua


Kele Cristina Batista Pereira. Uma mulher e suas infinitas descrições. Um universo particular cujas palavras nem sempre conseguirão contemplar. Aos 52 anos de idade, Kele sente-se exatamente com a idade que tem. O seu corpo, a sua mente e o seu espírito estão alinhados com o tempo-espaço ao qual pertencem. De sorriso largo e olhos expressivos, Kele exala uma energia calorosa, como aquele abraço quentinho de uma pessoa querida. São castanhos e escuros, os megafones que nos falam tanto. Comunica vida e a vontade de viver. Kele se arrepia de felicidade, seus olhos brilham ao ver as pessoas a sua volta superando desafios. “Vambora! Eu confio em você, você vai conseguir”, são palavras que saem de sua boca com a vontade constante de ajudar. Incentivar os outros e vê-los conseguir alcançar algo, a emociona, mesmo que por vezes seja ela a precisar ouvir essas mesmas palavras.


O R&B, Rhythm and Blues, é o gênero musical preferido de Kele Cristina, que entre uma letra e outra, encontra identificação. “Stand by me” é uma das canções que ela mais gosta, em todas as versões. Acompanhando o refrão, Kele diz, “Independente de tudo o que vem acontecendo, se eu tiver a minha base, que é a minha família e aquilo que eu luto por melhor, sempre comigo, eu vou ter forças”. Ao amanhecer, ela é preenchida por um sentimento de gratidão. Mas para esta mesma mulher, dias chuvosos são sinônimo de medo. Indagada sobre o momento do dia que mais gosta, Kele afirma gostar da noite, concretizando o que pôde escrever nas linhas da vida. Dos momentos mais tristes que viveu desde a infância, ela enxerga sobretudo, um aprendizado para si.


Ao olhar para o lado, Kele reflete e pensa em quantas pessoas vivem o mesmo tipo de tristeza ou coisas piores. Prefere não enquadrá-los como momentos tristes e sim, lições. Os tons de azul acompanham os sentimentos dessa mulher de alma altruísta e coração sorridente. Ela sonha ter forças para lutar e ver as suas filhas bem psicologicamente e emocionalmente, pois ela sabe que neste momento, a parte física irá depender mais delas mesmas. Kele Cristina Batista Pereira já é avó, na mais profunda completude do termo. A sua idade não denuncia, mas sim a voz carinhosa que se refere ao pequeno Joaquim. Seu sonho é ver ele tranquilo e sereno. Num futuro próximo, são muitas as histórias que a vovó Kele terá para contar.

Mulher negra sorrindo
Kele Cristina Batista Pereira (arquivo pessoal)

Lá trás, a jovem de sotaque mineiro nutria outros sonhos. Porém, logo cedo, conheceu as cartas do preconceito racial. A menina Kele sonhava trabalhar na televisão sendo paquita da Xuxa, mas não havia histórico de paquitas negras na telinha, “Mas aí as minhas amigas diziam, ah não, Kele, não tem a paquita preta, mas você pode ser a bota da Xuxa. Porque era preta. Olha pra você vê, que coisa louca?!”, relembra. No entanto, essa e outras situações não foram paralisantes. Kele realiza um trabalho social por meio da dança. Ainda nesta existência, pretende terminar de editar seu livro, “Memórias de uma suicida”.


Segundo ela, passou pela sua cabeça a ideia de que ela pudesse estar se matando aos poucos com a negatividade e a falta de esperança para obter a cura. Ainda sobre o livro, “Quando eu aprendi a me amar e a valorizar cada pensamento meu, mesmo ainda sendo negativo, eu aprendi que eu não estava me sabotando e nem estava me matando. É mais ou menos isso”, explica. Além disso, pretende realizar uma palestra para muitas mulheres, celebrando, em suas palavras, a vida, os sabores e os saberes.


Conversar com Kele Cristina é mergulhar numa atmosfera leve e repleta de poesia. São olhos de quem aprende, mas não retém conhecimento. É um viver professoril. Ela é uma mulher, dentre tantas ao redor do globo terrestre, que em determinado estágio da vida, recebeu um diagnóstico. Mas não se restringe a ele. Tem personalidade, gostos, amores, desejos e ofício. Conhece a importância da saúde física, mas não exclui os cuidados com o mental e o espiritual, pois sabe do tripé que a alimenta. Trocar as coisas de lugar enquanto escuta música é uma das coisas que mais curte fazer em seu tempo livre. A outra é montar coreografias para as suas turmas da terceira idade. Ex-passista, ilumina o dia dela e de outras mulheres com samba no pé.


Ativa, está sempre procurando algo para fazer, mas confessa que não gosta de bares, tem preguiça. Se tem algo que ela não suporta? Desrespeito aos idosos e a religião. Aliás, Kele tem uma fé. Ela é candomblecista, exerce função importante dentro da casa da qual faz parte e afirma que a religião a ensina que quem não abaixa para aprender, não fica em pé para ensinar. Por acreditar num ser supremo, diz que se existem outras religiões é porque Ele assim o quis. Em sua vida, acredita que nada foi por acaso. O que a faz acreditar no amanhã é o otimismo e o que dá força são os sorrisos, os abraços, os olhos brilhando e saber que existem pessoas que sentem orgulho do que ela representa. Saber que amanhã poderá fazer melhor do que ontem, é o que te motiva, ainda que seja apenas uma tentativa.


O mais alegre dos momentos que experienciou foi quando percebeu estar viva, no final de um tratamento doloroso e ciente de que a vida e a luta teriam que continuar. No paladar, cafézinho e ovo cozido são os sabores que ela ainda aprecia, mas indispensável mesmo é o sabor de ser criança, eternamente. Consegue imaginar? Pois para não restar dúvidas, Kele o descreve como aquele que desce na garganta quando você sente a chuva caindo na terra sob aquele aroma. “Ali eu me lembro da minha infância, na casa da minha avó, com os meus 13 tios e brincando de bolinhas, como se fossem soldados. Isso são os sabores, são os saberes que as pessoas não vão entender. Isso é um sabor de infância de ter vivido, ter presenciado, de ter pulado corda, ter brincado no barro, de ter brincado de carrinho de rolimã”.

Mulher negra sorrindo com lenço na cabeça
Kele Cristina Batista Pereira (arquivo pessoal)

Das sonoridades que escuta, gosta de Prince e Seal, até Jorge Versillo, mas é seu repertório que profere enorme poesia. Degustando cada sílaba, mastigando as lembranças e o pulsar da vida que tem dentro de si, Kele Cristina nos ensina a preciosidade dos segundos recheados de simplicidade. “Às vezes não é só o que a gente come que tem sabor, é o que a gente toca, é o que a gente sente, é o que a gente vive…”, finaliza. Assim como os sabores descritos por ela, Kele toca. Kele sente. Kele vive. Cada pedacinho que a compõe, a fortalece, ressoa e amplifica. Ela é a pausa contida no seu entusiasmo, a vontade de continuar a frase após um ponto e vírgula, as reticências de uma nova fase da sua vida.



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