Mãe, esposa, professora, reverenda, ativista e transexual, desde sua adolescência luta contra o preconceito e as barreiras que um dia já tentaram limitar seus sonhos.
O Brasil é o país que mais mata pessoas transgêneras no mundo. Em 2019 foram assassinadas 124 pessoas trans, sendo que apenas em São Paulo ocorreu 21 destes crimes, de acordo com o dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Assumir a identidade de gênero em um país como nosso é um símbolo de resistência, como o qual Alexya Salvador, 39, representa. Mãe, esposa, professora, reverenda, ativista e transexual, desde sua adolescência luta contra o preconceito e as barreiras que um dia já tentaram limitar seus sonhos. A falta de informação fez com que Alexya demorasse a se entender de verdade e tivesse que lidar com inúmeras agressões durante sua juventude.
"Eu fui uma adolescente que não me conhecia, não tinha referência. Eu cresci sem saber o que era ser trans e travesti. Eu sofri muito por conta disso na escola, porque como eu poderia sinalizar para os meus colegas de escola ou para os meus colegas de bairro quem eu era, se nem eu sabia", relembra.
Mesmo com toda a dor gerada por sua experiência, Alexya transformou todo o preconceito e o bullying sofrido em vontade de fazer a diferença e proporcionar para pessoas que passam pela mesma situação que ela um maior conforto. "Eu falava que quando eu crescesse eu seria a professora que eu não tive, porque eu não tive uma escola que me defendeu ou que me entendeu".
Já na graduação enfrentou mais um ambiente hostil, com novos confrontos vindos de quem a cercava na universidade. Na época, Alexya ainda não havia realizado sua transição de gênero, sendo socialmente "mais aceita", algo que a deu mais forças para continuar. "Eu pensei: 'eu cheguei até aqui, não é agora que eu vou deixar que essas pessoas tirem esse direito de eu ser professora'".
Papel da religião em sua vida
Durante seu processo de autodescoberta, a religião foi um dos maiores pilares de Alexya. Aos 7 anos, ela procurou a igreja católica, um ambiente em que sentiu acolhimento até a sua adolescência. "Conforme eu fui crescendo e entrei na adolescência, a igreja começou a se tornar um ambiente de uma violência muito mais forte do que os tapas que eu levava na escola, porque era uma violência psicológica, era uma violência em nome de Deus", afirma.
Mesmo assim, chegou a ir para o seminário, cursou filosofia durante um tempo, migrou para a teologia e quando já estava desacreditada da fé, encontrou a ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana), vertente protestante que acolhe o público LGBTI+. "Lá eu pude me perceber, me aceitar e fazer todo esse percurso de transição de gênero de maneira segura. Se no passado a igreja foi a opressora, nesse momento na minha vida a igreja foi a responsável pela minha libertação", revela.
A partir daí, cresceu dentro da comunidade, ganhou um papel mais ativo, foi ordenada diaconisa, depois instalada como pastora auxiliar, até que no dia 26 de janeiro deste ano foi ordenada clériga, se tornando a primeira pessoa trans na América Latina a ocupar esta posição.
"Eu chegando nesse lugar, é como se todo mundo chegasse. É como se todas as pessoas transexuais, homens trans, mulheres trans, pudessem perceber que nós também temos o direito de estar neste lugar, que nós pessoas trans temos o direito de sermos aquilo que a gente quiser ser, aquilo que a gente sente ser". Mesmo conseguindo vencer diversas barreiras, Alexya descobriu que sua luta não terminaria ali. "Você acaba tendo que combater todos os lados o preconceito, a discriminação, o fundamentalismo religioso, tentando deslegitimar a sua vocação, o seu chamado, então hoje eu entendo, nesses seis meses que me tornei reverenda, que agora mais do que nunca, permanecer é o mais difícil", confessa.
Vida nas salas de aula
Além de reverenda, Alexya conseguiu se tornar professora e atua há anos na área. Atualmente, dá aula para quase 500 alunos e acredita que abordar a diversidade em sala é essencial, mesmo que as questões mais conservadoras do país criem uma crença limitante de que os jovens, ao terem contato com informações sobre ideologia de gênero, podem acabar se transformando em LGBTI+. "Eu penso que é fundamental que o ambiente escolar trate da diversidade como um todo, porque uma vez falando daquilo que não é falado, daquilo que não é visto, a gente consegue desmistificar", frisa a educadora.
Enquanto professora, ela ainda enfrenta um novo desafio: o ensino virtual. Iniciando sua jornada de trabalho às 7h e finalizando ao 12h35, Alexya vai de uma sala a outra - virtualmente - e percebe o quão complicado é conquistar a atenção e a disciplina dos alunos de longe.
"Criar essa consciência de que aquele horário, como se eles estivessem indo para escola ainda está sendo nosso maior desafio, uma vez que, no caso dos meus alunos, que são periféricos, essa política que o Governador Dória colocou não atinge todo mundo", analisa. Desde o dia 23 de março deste ano, as aulas presenciais em São Paulo foram suspensas e se tornaram remotas, através de conteúdos transmitidos em plataformas de ensino, aliados a um programa educativo da TV Cultura.
Mesmo assim, na visão da professora este decreto não incluí alunos que não possuem estrutura tecnológica em suas casas, nem mesmo materiais ou então o que comer, visto que a merenda do ensino público era um dos únicos alimentos diários de milhares de crianças.
Lado maternal e luta pelos direitos da Comunidade T
Mas os alunos não são as únicas crianças que ocupam o dia de Alexya, visto que ela é mãe de três. Mesmo diante de tantos desafios, ela foi a primeira mulher transexual no Brasil a realizar o processo de adoção, algo que tornou possível seu sonho de ser mãe. "Hoje, quando eu olho para os meus filhos de noite, eu vou ver se eles estão cobertos, acendo a luz do quarto, vejo eles protegidos, guardados, bem alimentados, quentes, amados, eu agradeço muito a Deus e me sinto muito privilegiada de poder exercer um sonho que eu rezei a vida toda e que eu achava que eu não ia ter isso na prática", revela.
Até conseguir a guarda deles, Alexya sofreu a descrença do próprio movimento a qual faz parte, visto que a burocracia para o público LGBTI+ adotar são ainda maiores - mas ela provou não ser impossível.
"É uma vitória para mim poder sinalizar para toda Comunidade T (transexual) que nós também podemos ser mãe, que nós também podemos ser pai e que a gente pode construir nossa família de acordo com a nossa realidade enquanto nossa identidade de gênero", afirma Alexya. No papel de mãe e educadora de três crianças, ao lado de seu marido, Alexya revela os valores que busca passar a seus filhos. "Eu sempre procuro falar para eles que a gente nasceu para resistir, que a gente não veio aqui fazer passeio no mundo, não. Viemos com o propósito de ajudar as pessoas, porque quando a gente se ajuda, a gente ajuda os outros".
Mãe de duas meninas transexuais, Alexya ainda busca lutar por um mundo melhor para que suas filhas não sofram o que ela sofreu ou acabem sendo vítimas da violência do Brasil. Ao imaginar um mundo ideal, ela vê maior inclusão e respeito para toda à diversidade humana.
Para tornar possível os direitos da Comunidade T, Alexya Salvador ainda recorreu a política, em que em 2018 concorreu a Deputada Estadual e arrecadou 11 mil votos. Apesar de não ter sido eleita, seu partido conseguiu eleger a Deputada Erica Malunguinho e a co-deputada Erika Hilton, duas mulheres transexuais. Neste ano, a professora e reverenda é pré-candidata a vereadora no município de São Paulo. "Eu entendo que se a gente não ocupar esses espaços, essas demandas não são tratadas e, quando são tratadas, são por pessoas que não são LGBTI+, por exemplo", reflete sobre a importância de ocupar estes espaços.
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